As luzes da cidade brilhavam em
seus diversos tons. O amarelo das lamparinas, o vermelho de alguns letreiros ao
longe. O azul da noite. A neve caia lentamente, cobrindo, aos poucos, o chão
judiado pelo tempo.
E estavam
ali, os dois. Do alto daquele prédio abandonado, podiam ver a cidade inteira
brilhando na escuridão. Como nos velhos tempos.
- As luzes... Elas ainda são as mesmas. – Disse a garota,
admirando o horizonte. Sabia que todos aqueles anos mudaram completamente a
alma dos dois. Sabia que as coisas já não funcionavam como antigamente. Mas
também sabia que aquelas luzes ainda estavam lá, assim como estariam, daqui a
muitos anos.
- São, não é? – Responde ele.
- Sabe... – Ela olha para o rosto do amigo, que, como o
espírito de ambos, guardava marcas de um tempo distante, que só eles conheciam.
Ela sabia o que ela tinha passado, e ele sabia o que ele tinha passado. Aquela
conexão que unia um ao outro não existia mais. Ele era um, e ela, outra. – O
tempo passou.
- Eu lembro, dele passando. Acho que é mais fácil lembrar as
coisas distantes, quando as cores tinham outros significados.
- Os significados mudaram? – Pergunta ela.
- Não. – responde o jovem, sabendo que os anos podiam
distorcer até mesmo a maneira com que entendiam um ao outro. – Nós mudamos. –
diz, por fim.
- Mudamos, né?
- Mudamos.
O silêncio se estabeleceu mais uma vez. Eles estavam
sentados na beirada do concreto envelhecido. Como nos anos dourados, estar ali
era brincar de ser invencível, de estar acima do perigo da morte, de todas as
coisas que poderiam machucar-lhes. Erguendo uma das mãos, a garota pegou um
pequeno floco de neve que caia. Não esperou muito para ele desaparecer no calor
de sua pele.
- A neve também não mudou. – Diz, enquanto lembrava das conversas
que tinham no passado. Naquela época, a neve parecia significar muito mais do
que era hoje.
- É, ela também é a mesma.
- Será? – Pergunta a menina.
- Ou não. Não sei se somos capazes de mudar aquilo que está
à nossa volta. – Ele olha para ela. Não só ele havia mudado fisicamente, como
ela também parecia outra pessoa. O mundo destroçou aquela imaginação fértil,
aquele sorriso que sempre foi mais forte que qualquer dor insuportável. Ou
talvez não, talvez ela também fosse tão diferente, que ele não saberia mais
dizer se aquelas marcas eram de alguém que havia perdido a esperança.
- Você desistiu?
- Desisti de quê?
- De acreditar.
Por alguns instantes, ele achou que a resposta não viria,
que ali seria o fim definitivo daquele laço. Ele não sabia se devia se importar
com um fim, não sabia se seria doloroso, ou se seria apenas como antes. Uma
nova fase, com novos capítulos.
- Não, eu não desisti. – Respondeu ela, contrariando os
pensamentos do rapaz.
A neve caia mais rápido agora. O vento era perceptível, e
mais uma vez, era perigoso estar ali, no alto do prédio esquecido no tempo. Era
necessário estarem naquele lugar, para perceberem que tudo teve um significado,
mesmo que hoje este não importasse mais.
- Sabe, as cores... Eu ainda acredito nelas. – Diz o rapaz,
ficando em pé. O perigo era maior, e poderia escorregar a qualquer momento para
a escuridão lá embaixo.
- Sim. Mas ainda assim os significados mudaram.
- É. – ele diz. – Mas talvez isso não seja ruim.
Ela se levanta, de modo a ficar em pé, admirando o
horizonte, como ele. As luzes distantes davam a estranha impressão de voltar ao
passado. Por isso estavam ali, para entender tudo que mudou.
- Agora começo a entender que não é ruim. Nós mudamos, os
caminhos mudaram. Você não é mais você.
- Você também não é mais você.
- Estamos tão diferente... Como isso aconteceu?
- Os caminhos... Eles escolheram nos separar.
- Seria esse um motivo de tristeza?
- Talvez não.
- O que quer dizer?
- Nos conhecemos, isso já não vale?
- Vale?
- Tivemos a chance de entender um ao outro como poucos têm a
chance de entender. Tivemos nossos momentos de lágrimas, nossas alegrias,
nossos sonhos partilhados. Algumas pessoas passam a vida inteira sem entender o
verdadeiro significado de sentir.
- Mas do que vale isso, se um dia acaba?
- Um dia tudo acaba. Mas você não fica feliz por tudo que
passou? Não fica feliz pelas coisas que mudaram, e por ter percebido que existe
uma vida além daquilo que nós acreditamos?
- E os sentimentos eternos? Nós acreditávamos neles.
- Eles sempre existiram.
- E agora não mais?
- Talvez tenham mudado também.
- Ou seja, sumiram.
- Não, só mudaram.
O vento se tornou mais forte, a neve que batia na pele
aquecida provocava sensações mágicas que só a natureza era capaz de proporcionar.
Naquele momento, nunca estiveram tão sozinhos, e tão cheios de esperança.
- A liberdade mudou.
- Então tinha chegado a hora, de crescermos.
- Não sei. Você ainda vê?
- Eu tento, não sei mais se consigo.
- Não esqueça de como é, ver o mundo com a magia que foi
proporcionada a nós.
- Você ainda acredita em magia?
- Da vida? Claro.
- O tempo esfriou meu coração. Acho que não consigo voltar
atrás.
- Não, você não está fria. Só não lembra de como é crescer,
e ter a certeza de que essas memórias são o que nos leva para frente.
Ao longe, os sons de uma orquestra podiam ser ouvidos,
apenas por eles. A orquestra de seus corações indicava que ali teriam mais um
Adeus. Agora, se encaravam, lendo as mudanças nos olhos do amigo. Era mais uma
vez, a certeza de que estariam juntos, mesmo que nunca mais voltassem a
encontrar um ao outro. Não sabem ao certo quanto tempo durou aquele momento,
até que, sem dizer uma palavra, foram em direção as escadas em ruínas que os
levaria para a rua lá embaixo.
Antes de cada um seguir seu rumo, olharam para o amigo mais
uma vez, e não conseguiram esconder os sorrisos, de quem tem a certeza de que,
em algum lugar, tem alguém com quem contar.
...
(Texto encontrado em um HD antigo e distante de anos passados perdidos no tempo)